A “Falsa Apologética” e a desonestidade intelectual

Uma das coisas que pouca gente sabe é que eu nem sempre fui muito apegado às normas de escrita e ABNT. No meu antigo blog (de mesmo nome que este) eu praticamente não seguia nenhuma norma nos primeiros anos. Isso era notável pela falta de acentuação e, na maioria dos casos, falta de apud nas Referências. Muito disso se deve pela minha parcial ignorância quanto a essas regras e falta de vontade de pesquisar mais.

Mas esses eram erros esperados de alguém que entrou na vida acadêmica em tempos relativamente recentes. O que se vê nas tentativas de apologética nas redes sociais infelizmente mostra uma realidade pseudointelectual muito maior do que isso. Deixe-me ilustrar com um exemplo:

Suponha que você, vasculhando a internet, encontrou uma cópia dos livros Não tenho fé suficiente para ser ateu (Norman Geisler e Frank Turek), Criação ou Evolução (John MacArthur) e A morte da razão (Francis Schaeffer). Após a leitura desses livros escritos por apologistas cristãos, você começa a imaginar que a sua cosmovisão cristã é obviamente verdadeira e que quem discordar é agente militante de satanás. Mais do que isso, você segue e lê o livro Fomos Planejados (Marcos Eberlin) e crê que todos que negam que a Terra e o Universo têm 6.000 anos são, caso sejam cristãos, rendidos ao sistema e, caso sejam ateus, negacionistas da verdade óbvia que eles veem, mas rejeitam.

Perceba: a opinião acima foi formulada a partir da leitura de um lado só. Infelizmente, o apologista cristão não se dá conta de que o mundo é muito maior do que sua bolha mostra. Os autores citados podem muito bem ter bons argumentos e, em certos casos, eles até citam os oponentes do outro lado, mas isso não significa que eles refutaram o outro lado. Quantos leitores dos livros de aconselhamento bíblico anti-psicologia realmente leram alguma coisa de psicologia? Pouquíssimos, mas mesmo assim a maioria insiste que é uma prática diabólica que destrona Deus do coração. São meros repetidores de frases de efeito que, no máximo, leram Evasivas Admiráveis (Theodore Dalrymple) e citam fora de contexto ainda (já vi pessoas citando esse livro como se o autor, que é um psiquiatra, estivesse invalidando a psiquiatria).

Infelizmente, a apologética está recheada dessa pobreza intelectual. Os anti-psicologia não leram artigos acadêmicos da psicologia, tampouco leram explicações sobre as grandes teorias psicológicas da mente humana e muito menos entendem o aprofundamento que a área requer. Nunca se deram ao trabalho de ler livros e artigos de pessoas que defendem a prática psicológica e sua compatibilidade com a fé cristã. Acham que uma citação do John MacArthur com ar de sabedoria por seu tom contra-cultural resolve e encerra a questão. Isso é desonestidade intelectual.

Mas não é a única área em que isso acontece. Por mais que o cenário arminiano, por exemplo, seja pobre na teologia brasileira, quantos apologistas calvinistas realmente leram os acadêmicos e exegetas arminianos? Não leram. Eles só citam Romanos 8. Isso é desonestidade intelectual. Quantos criacionistas leram os evolucionistas? Poucos. A maioria acha que complexidade irredutível do Michael Behe selou a questão em 1996 e que quem não enxerga isso é negacionista cego. Quantos conservadores leram Karl Marx, Paulo Freire e outros chamados de “comunistas”? Quase nenhum. Isso é desonestidade intelectual.

Não me entendam errado. Eu não sou arminiano e nem de esquerda. Mas é justamente por eu não ter lido o suficiente do outro lado que eu não falo sobre o assunto aqui. Eu sou pró-psicologia e não sou criacionista de terra jovem, justamente porque eu estudei os dois temas (além de fazer terapia a alguns anos).

Certa vez, em um blog que eu costumava escrever, um jovem seminarista publicou um texto contra o Molinismo. Ao ver a descrição que ele fez do Molinismo eu pensei: “Mas isso não é Molinismo! Molina nunca disse isso! Os Molinistas não creem nisso!”. Quando vi as referências, tudo ficou claro pra mim: ele só leu sites calvinistas. Infelizmente isso acontece com uma frequência muito grande no meio cristão. Isso é desonestidade intelectual.

O anseio por “estar certo” e ser um apologista conservador e admirado pela comunidade é uma grande tentação. Mas, será que realmente honra a Cristo combater tantos maus combates com uma visão distorcida do “inimigo”? Por que algumas pessoas simplesmente aceitam que a psicologia, o marxismo, o molinismo, o evolucionismo e várias outras áreas de estudo e “ismos” são inimigos, sendo que nunca leram algo de algum dos proponentes e defensores deles? Mesmo que o marxismo seja do mal, antes de atacá-lo, estude-o.

Esse texto foi motivado pela quantidade imensa de ignorância que se vê por parte dos apologistas contra-cultura. Eles querem se opor à cultura de qualquer jeito. Por conta disso, vão pegar nomes de áreas que não entendem e de movimentos que suas cabeças nem ao menos conseguiram decifrar o significado do nome para colocá-los em caixinhas seladas com o nome “inimigo”, sendo que não fazem ideia do que estão combatendo. Isso é desonestidade intelectual – Isso desonra Cristo.



Uma resposta para “A “Falsa Apologética” e a desonestidade intelectual”.

  1. Avatar de Vinícius L. Fontclara
    Vinícius L. Fontclara

    Isto é realmente complicado… No meu caso, especificamente, o problema é que eu comecei a me aprofundar no estudo da apologética somente agora (e estou com dezoito anos e cursando História). Meu problema é que justamente eu sou muitíssimo ignorante em relação à muita coisa, inclusive no que tange à própria Teologia e Filosofia cristãs, e justamente por isso não me acho na condição de presunçosamente ficar emitindo juízos totalmente definitivos de outras doutrinas teológicas ou filosóficas com as quais discordo. O problema de hj em dia é que pessoas nada inteligentes estão cheias de certezas, e as realmente sábias, cheias de dúvidas (acho que foi Bertrand Russel que disse isso).

    No meu caso, o que me prejudica é que eu sinto que eu poderia ter me aprofundado e estudado estas questões há muito tempo atrás, mas não o fiz, e a minha falta de conhecimento é algo que me incomoda, ainda mais que penso em me dedicar a uma vida intelectual. Às vezes eu sinto que há tantas coisas diferentes pra ler e estudar que se torna bastante difícil e leva muito tempo pra “escrutinizar” de maneira profunda diversas questões, observando-as de diferentes perspectivas, como você mencionou.

    Mas enfim, parabéns pelo trabalho, Filipe. Vc é fera!

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Sobre mim

Felipe é formado em Design Visual pela FMU, em Filosofia e em Teologia, ambos pelo Mackenzie. Atualmente é mestrando em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6279641981039513

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